Em março de 2005 passou no Congresso Nacional uma nova Lei de Biossegurança cujo propósito precípuo era legalizar o plantio de cultígenos transgênicos em todo o Brasil. Até então, o arroz e a soja transgênicos, sem regulamentação legal, tinham entrado no Brasil por contrabando e estavam restritos a alguns municípios de estados como o Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, formando um mosaico de plantações no meio dos cultígenos “naturais”. Determinado a varrer do país os transgênicos, cujas sementes são produzidas por grandes empresas, como a Monsanto, o movimento sócio-ambientalista, tendo à frente a ministra Marina Silva, a bem do meio ambiente e do anti-capitalismo, arremeteu-se em dramática campanha salvacionista, perdeu na política e sofreu um violento revés, incalculavelmente deletério ao meio ambiente, na estimativa do próprio movimento, e assim viu os transgênicos se espalharem legal e desbragadamente por todo o Brasil, ameaçando contaminar as plantações não transgênicas e submetendo os agricultores à genuflexão perante o grande capital do agronegócio.
Passados seis anos, pouco se tem notícia das consequências deletérias previstas pelos ambientalistas, mas, ao contrário, sabe-se apenas dos resultados benéficos trombeteados pelos amantes transgênicos.
Em janeiro de 2011, 35 anos após o início do processo de avaliação do potencial hídrico, que resultou na decisão política de instalar uma grande hidrelétrica no baixo curso do rio Xingu, quiçá com algumas outras a montante para servir de represagem de água; passados 25 anos da atuação de um vigoroso movimento etno-ambiental contrário, com pronunciamentos científicos e retórica profetista, cujos ápices de atividade foram (1) um happening em fevereiro de 1989, na cidade de Altamira, onde mais de 1.000 índios se manifestaram em uníssono contra a construção de hidrelétricas no majestoso rio, e (2) uma longa e disputada guerra de ações judiciais, liminares e derrubadas de liminares protagonizada dentro e pelo judiciário brasileiro; no calor de todos esses protestos, de repente, o atual presidente da Funai, órgão federal encarregado de defender os direitos indígenas e assistir os povos indígenas em suas relações com o resto majoritário da nação brasileira, rabiscou em uma simples folha de papel o seu “nada a obstar” para assegurar ao IBAMA que as populações indígenas do baixo rio Xingu teriam sido honesta e protocolarmente consultadas e teriam aquiescido à construção da Usina Belo Monte, com alguns condicionantes. Perplexos, os índios e os ambientalistas ainda tentaram um novo round de protesto, de tentativa de persuasão das autoridades. Foram recebidos no Palácio do Planalto, esclareceram que não haviam sido consultados e ponderaram que melhor seria não fazer essa hidrelétrica. Tudo em vão. Em consequência, desmoronou a resoluta resistência indígena, arrefeceu-se a estridência dos protestos nas redes sociais, sumiram os arautos estrangeiros das hecatombes ecológicas e das maldades da civilização ocidental, apagou-se a adulação aos indígenas como seres da natureza. Paralelamente entraram em campo os mediadores favoráveis a Belo Monte, ou mandados pelo governo, para aliviar por palavras de sensatez a angústia do futuro e para derreter os pequenos motivos que ainda poderiam alimentar as convolutas e intempestivas demonstrações de contrariedade por parte dos indígenas.
Hoje, Altamira, a cidade-vítima de Belo Monte, fervilha de fofocas e de expectativas mal formuladas, e ninguém em sã consciência pode dizer o que será dessa região após a construção (se é que acontecerá!) dessa gigantesca, custosa e maculada hidrelétrica.
Apôs, então, agora, aos 24 de maio de 2011 a Câmara dos Deputados vem de votar por 410 votos contra 63 o projeto de um novo Código Florestal, cujo conteúdo recende a maldades, pegadinhas, puxadinhos e espertezas inseridas por seu deputado-relator, Aldo Rebelo, do fatidicamente pós-revolucionário PCdoB, normas e artigos que favorecem àqueles que mais têm se aproveitado da infinita complacência da legislação brasileira, bem como de sua pouca capacidade de se fazer cumprir, os grandes fazendeiros do agronegócio, os auto-proclamados novos “senhores de engenho”, e no bojo de seu poder, seus aliados subalternos, os médios e pequenos fazendeiros, que lhes seguem o exemplo, e, por fim, os pequenos e micro ruralistas, colonos do Sul do Brasil, plantadores de café de Rondônia, criadores de porcos e galinhas do Paraná e Santa Catarina, chacareiros de São Paulo, todos temerosos de que os bonitinhos do meio ambiente satanizem seu modo tradicional de ganhar o pão suado, fazendo-os criminosos perante a lei, sob o cutelo do opróbrio da sociedade civil urbana, com suas modas, suas novelas e seu modo de vida fácil, esquecidos de quem leva o pão, a manteiga e o feijão de cada dia são eles, a classe rural brasileira, e tudo por precinhos baratos!
Pergunta-se: O que essas ações significam, o que têm em comum, além de evidentemente representar vitórias acachapantes das forças econômicas sobre os interesses gerais dos brasileiros e de um futuro mais harmonioso para o Brasil?
Elas significam muitas coisas para a ética coletiva brasileira, para o desenvolvimento sustentável e para a autonomia político-cultural do nosso país. Não cabe discutir esses pontos importantíssimos nesse pequeno artigo. Porém, politicamente esses eventos demonstram acima de tudo o fortalecimento cada vez mais desabrido do poder das classes dominantes sobre as classes médias e populares. Demonstram o quão organizado está o círculo de alianças formado pelas classes dominantes, o quão elaborado está seu discurso ideológico (a ponto de seduzir segmentos das classes médias urbanas, além dos pequenos lavradores) e o quão bem aplicada está sua estratégia de ampliação de seu poder e de amplificação de sua ideologia sobre os demais brasileiros. Poder econômico, poder político e poder ideológico finamente sintonizados.
A consciência crítica das classes médias urbanas e as classes populares rurais e urbanas está estupefacta. Que está acontecendo nesse mundo que não a escuta? A voz da nova racionalidade sócio-ambiental ressoa vibrante, às vezes estridente, nas mídias virtuais e nas passeatas de protesto contra as instituições de desenvolvimento econômico do país, alumiando o mundo com seus pronunciamentos, alertando os incautos e inscientes com sua sabedoria profetista. Um tanto insegura em seu pedestal, porém, ela se perfila com suas congêneres de outros países, especialmente dos Estados Unidos e da Europa, pensando que com isso ganha peso ideológico, quando, ao contrário, aos olhos da opinião comum brasileira, mais e mais perde credibilidade.
Politicamente as classes médias e populares não podem reclamar que estão sendo forçadas a aceitar imposições autoritárias. Ao contrário. No jogo da pós-modernidade ao qual todos estamos submetidos, os três atos políticos foram promovidos e realizados no regime de eleições democráticas, sob a batuta de um governo popular eleito pela maioria do povo, liderado por um partido que se auto-identifica como a classe trabalhadora brasileira e que passou anos se preparando para governar a partir de uma avaliação própria dos anseios e dos interesses mais nobres das classes populares e médias.
A realização dos três atos políticos não passou incólume. Ao contrário, em todo o processo de formulação e realização cada um desses atos se submeteu à vergasta da dura crítica, se não do opróbrio e da condenação, foi moído debaixo de avalanches de vituperações e açoitado por torrentes de acusações açuladas pelos quadrantes mais bem posicionados na hierarquia das classes médias: cientistas, ambientalistas, gente urbana bem estabelecida, uma fina flor social que surgiu nos últimos decênios da pós-modernidade brasileira.
Dadas essas explicações, pergunta-se ainda, por que, afinal, esses três projetos econômicos que aparentemente ameaçam um futuro mais harmonioso e sustentável para o Brasil passaram destemidos e sem volta nas instâncias políticas?
Evidentemente a consciência crítica das classes médias — que nunca teve ganas de persuasão sobre os brutos fazendeiros (antes considerados atrasos da sociedade brasileira), os grosseiros médios e pequenos proprietários de terra, nem sobre os industriais dependentes do capital externo — perdeu a sedução sobre si mesma e sobre os segmentos majoritários das classes populares urbanas e rurais. Sua voz soa débil na convicção de suas proposições e debilitada pelas filosofias e ideologias que a sustentam. A filosofia diferencialista, que predomina nos movimentos sociais brasileiros (incluindo em órgãos judiciários como o Ministério Público), que propõe e propala que tudo é válido, que a verdade é relativa, por exemplo, ao invés de ser libertária, virou oportunidade para qualquer um propor sua Ideia e ter o mesmo peso de uma outra mais ponderada. Em outras palavras, o relativismo cultural e ético reinante abriu um imenso flanco de desproteção para aqueles que mais precisam da ação do Estado e da Nação.
Dois exemplos ilustram esses pontos. (1) Durante anos propalou-se que os problemas de cada entidade federativa deveriam ser tratados na base, numa clara imitação do pendor norte-americano pelo municipalismo e pela autonomia dos estados, e fundamentalmente contra a tendência nacional de centralização do poder federal por temas específicos. Por exemplo, para questão indígena, meio ambiente, controle de rios, estradas, estratégias de desenvolvimento, etc. De repente, a coisa pega, como no Código Florestal, quando os fazendeiros ganham força para fazer decidir pelos estados os parâmetros da política ambiental. Outro caso exemplar: (2) durante três decênios, desde fins da ditadura militar, o movimento indigenista de teor neoliberal afundou a Funai de críticas e maledicências as mais cruéis, conclamando a opinião mundial a se unir a ela contra a tradição indigenista brasileira de cunho rondoniano. Eis que, chegada a hora, a Funai cada vez mais esvaziada pelos críticos, que agora estão no poder, os estados e municípios se vêm fortalecidos para vir em assistência aos povos indígenas que estão sendo deixados ao léu. Assistir os índios em suas pequenas reivindicações, ouvi-los em seus reclamos, para acioná-los ao seu talante, é o que pretendem os políticos estaduais com ambição, a pouco e pouco, olhando no horizonte do futuro próximo, para auferir, como no passado já fizeram, as riquezas, as terras e o patrimônio dos índios.
Os fazendeiros, os desmesurados desenvolvimentistas e seus acólitos ganharam essas três disputas importantíssimas dos últimos 10 anos. Não vão parar por aí. Virão novas disputas e eles estão muito bem preparados para lutar para vencer. Com efeito, seu projeto não é de curto prazo. O que eles almejam é retomar o controle do Brasil, como na época da República Velha, como na época colonial, é infundir sua visão de futuro para o Brasil.
O que é que nós, elaboradores e colaboradores de uma visão mais racionalista e supostamente mais harmoniosa para o futuro do Brasil, almejamos? O poder pelo poder, o poder só para nós, o poder que recusa o diálogo com as ideologias dominantes?
Lutar no varejo, sem visão de futuro, sem ponderar suas forças, dar murros em ponta de faca, jogar para os ares todas as fichas como se fosse o fim do mundo – não são verdadeiramente atitudes que se espera do movimento sócio-ambientalista brasileiro. A continuar assim, os fazendeiros e seus acólitos ganharão todas que virão por aí.
É hora de dar um passo para trás, de refletir desde as bases filosóficas que dão sustentação às ações políticas e sociais, para depois se posicionar com visão estratégica mais sólida, menos voluntarista e menos escatológica.
Mostrar a nós mesmos que há novas possibilidades de viver, de estar no mundo, mostrar ao mundo que se pode realizar uma sociedade mais harmoniosa, menos consumista, mais igualitária e mais solidária — é o que significa ser de esquerda no Brasil e no mundo. Trabalhar por isso com humildade, com dedicação e com fé, é o que definirá a atitude libertária de todos nós que, de algum modo, somos seres políticos no Brasil.