No último dia 19 de abril, pouco mais de um ano
da publicação do relatório de identificação e delimitação no Diário Oficial, o
Ministro da Justiça Eduardo Cardozo publicou a Portaria nº 1.702, que declara de posse
permanente do grupo Tremembé a Terra Indígena TREMEMBÉ DE QUEIMADAS com
superfície aproximada de 767 hectares (DOU, 22/04/2013. Ver imagem abaixo). Depois de mais de duas
décadas de conflito com o DNOCS, finalmente a referida comunidade indígena tem
seu território declarado, aguardando agora a demarcação física e posterior
homologação pela presidenta Dilma.
Diário Oficial da União, 22/04/2013 |
Elaborei um pequeno texto informativo discorrendo brevemente sobre
as origens deste grupo e o processo de reconhecimento étnico em curso.
A SAGA
DOS TREMEMBÉ DE QUEIMADAS: DIÁSPORAS E RESISTÊNCIA INDÍGENA
Ronaldo Santiago Lopes (PPGAS/UFRN)
A Terra Indígena Tremembé de Queimadas está
localizada há 34 km da sede do município de Acaraú, estando margeada pelo
Perímetro Irrigado do Baixo Acaraú. A história dos índios Tremembé de Queimadas
se insere no contexto de uma série de dispersões que se iniciam no final do
século XIX, forçadas inicialmente por uma das piores secas vividas no Ceará,
precisamente em 1888, quando vários grupos de famílias saem de Almofala, no
litoral, em direção às matas e beiras de rios em busca de alimento e melhores
condições de habitação.[1]
Um desses grupos seguiu pelas matas, ao sul do
município, estabelecendo-se num lugar que deram o nome de Lagoa dos Negros.
Outro grupo avança alguns quilômetros, desbravando a área onde atualmente é a
TI. Córrego João Pereira, no limite entre os municípios de Acaraú e Itarema.
Na Lagoa dos Negros viveram alguns anos até a
chegada do fazendeiro Doca Sales. O nome do local faz referência a uma lagoa que
teria sido desencantada pelo pajé João Cosmo. O
pajé, um dos líderes do grupo, teria “achado” uma grande lagoa, cercada por uma densa vegetação. No entanto, a lagoa
estava encantada. Foi aí que o pajé se utiliza de suas virtudes
mágico-religiosas para desencantar a lagoa, consolidando a ocupação dos Tremembé
na região.
Entretanto, como relatam Brissac e Marques (2005), não tardou para que o fazendeiro Doca Sales descobrisse e cobiçasse a terra, expulsando as famílias do local, tendo em vista que pela
abundância de água, o local era propício para a criação de gado. Neste momento,
ocorre uma segunda dispersão tremembé que, após a expulsão da Lagoa dos Negros se dividem entre Queimadas e várias localidades próximas.[2] Viveram no local por mais de 30 anos, até sua
expulsão em 1927.[3]
Com a dispersão, algumas famílias
foram se alojando em algumas comunidades próximas até que decidem se fixar e ocupar o lugar onde
viriam a denominar Queimadas. Um grupo de sete famílias se estabelecem num lugar
descampado, sem vegetação, decorrente de uma
queimada de proporções gigantescas. Deste fenômeno ambiental surgiu a
denominação Queimadas. Segundo relatos orais, a ocupação do território teria se
iniciado em setembro de 1927 (Brissac e Marques, 2005; Patrício, 2010).
A partir desta data
os Tremembé de Queimadas, ao mesmo tempo em que finalmente conseguem se fixar
num local, vão sendo lentamente pressionados pela ambição de posseiros que
tentam tomar suas terras. Conforme o relatório antropológico da TI. Queimadas,
“Os anos que se seguiram após a chegada
em Queimadas foram de muito esforço para todos. Como vimos nos relatos acima.
Assim como ocorreu na Lagoa dos Negros, fazendeiros do gado também chegaram a
Queimadas. Acima se mencionou que nas vizinhanças, onde futuramente seria a T.I
Córrego João Pereira, havia conflitos para a expulsão das famílias Tremembés,
em Queimadas não foi diferente, um fazendeiro de nome Major Duca e outro
chamado de Chico Rios faziam a grilagem de terras na região com ameaças de
expulsão e morte. Somente em 1957, com a fragilidade das famílias que viram aos
poucos seus membros mais idosos serem subtraídos e seu território reduzido cada
vez mais, é que tomaram providencias” (Patrício, 2010, p. 45).
Três irmãs, duas
delas viuvas e a outra solteira, recorrem á justiça na época, na tentativa de
registrar e garantir juridicamente a posse da terra ocupada, como relata
Antonio Félix, liderança indígena de Queimadas, hoje falecido:
“Quando
morreram os véio tudinho os homens, ficou as mulheres. Aí o povo mesmo do
Acaraú se compadeceu delas e vamos fazer o documento desta terra antes dos
tubarão. Aí fizeram no 57, da légua de terra como era que eles tinham chegado,
mas botaram os confinantes logo. Do jeito que diz aqui: Manoel Duca da Silveira
no Norte, Zé Emiliano de Freitas no Sul, Antonio Monteiro da Costa no Poente e
a carroçal do Acaraú a Fortaleza, diz tudinho nos documentos. Aí as véia
morreram e nós fiquemos e aqui tamos quando chega o DNOCS se apresentando”.[4]
O documento citado
por Antonio Félix indicava que área do povoado Queimadas teria uma légua em
quadro, o equivalente a 3.600 hectares. Ainda segundo Patrício (2010), ao longo
das décadas de 60, 70 e 80 do século passado, as famílias vão gradativamente
perdendo o controle da terra, com as invasões ou negociações ardilosamente
realizadas com fazendeiros que se apossam da terra em troca de produtos
alimentícios, tecidos ou por valores módicos, numa prática bastante conhecida e
recorrente no Nordeste.
A comunidade vive relativamente tranquila até a chegada do DNOCS que desapropriou
uma extensa área de terras para construção do Perímetro Irrigado do Baixo
Acaraú. O início do projeto data de 1981, mas os conflitos com os Tremembé de Queimadas se iniciaram no final
dos anos 80 quando, não reconhecendo a
presença de populações indígenas, o órgão inicia o processo de desapropriações
das terras. Os conflitos foram se arrastando por mais de uma décsda, até que se intensificaram
em 2005, quando é expedida uma ordem de despejo
para as famílias, que deveriam desocupar a
área em 72 horas.
Na época, o caso mobilizou Ong’s indigenistas, o MPF, FUNAI e outros
segmentos da sociedade civil, além da imprensa, gerando grande alvoroço, sobretudo pela iminência de um conflito entre a polícia e
os Tremembé, não só de Queimadas, mas de várias
localidades que planejavam se reunir para impedir a entrada dos tratores que
iriam demolir as casas. A atuação da Associação
Missão Tremembé, da FUNAI e de políticos, além da repercussão do caso nos jornais, obrigou o DNOCS a retroceder. Em seguida a FUNAI
conseguiu na justiça a paralisação das obras até que os estudos antropológicos
fossem realizados.
Dentre os processos de territorialização dos Tremembé, Queimadas foi a última a iniciar o processo de organização
sociopolítica de perfil étnico. Como se poderia esperar, é a partir do conflito com o
DNOCS, aliado ás articulações indigenistas, que inicia o
processo de emergência étnica dos Tremembé de Queimadas. Além disso, a
proximidade espacial e social com os Tremembé do Córrego João Pereira também se constituiu como um fator importante na construção da etnicidade em Queimadas, tendo em vista as íntimas relações entre famílias
das duas situações, como também o caráter
pedagógico da situação vivida no Córrego João Pereira anos
antes, servindo como um modelo de ação política de caráter étnico.
Em março de 2010 foi
formado o Grupo de Trabalho – GT da FUNAI que realizou o estudo de
identificação e delimitação da Terra Indígena Tremembé de Queimadas. Em
dezembro de 2011, foi publicado no Diário Oficial da União o resumo do
relatório circunstanciado de identificação e delimitação em que foi definida a área
da TI totalizando 767 hectares. A aldeia Queimadas tem uma população de 220
indígenas, agrupadas em 44 famílias[5].
Mapa das TI's Queimadas, Córrego João Pereira e Almofala Fonte: Relatório de Identificação e Delimitação da TI Queimadas (Cf. Patrício, 2010). |
Enquanto o processo
demarcatório não é concluído, os Tremembé de Queimadas tem se voltado, nos últimos
anos, para discutir estratégias de sustentação econômica na própria aldeia, já
que muitos indígenas ainda trabalham fora da comunidade, principalmente como
diaristas no Perímetro Irrigado do Baixo Acaraú. Essas estratégias perpassam
dois aspectos principais: os métodos de produção agrícola e as condições
ambientais (Lopes e Bezerra, 2011 e Lopes, 2012).
A demarcação da TI
Queimadas ocorre num momento em que algumas ações começam a ser esboçadas no
território tradicional, no sentido de mobilizar a comunidade local,
instituições parceiras e órgãos do governo federal para a promoção da gestão
ambiental e territorial da terra indígena. Dentre estas ações destacam-se o
projeto apoiado pela Carteira Indígena/MMA e as ações de acompanhamento e
monitoramento realizadas pelo Programa de Gestão Ambiental e Territorial de
Terras Indígenas – GATI, coordenado pela FUNAI e Ministério do Meio Ambiente –
MMA.
Fotos: Ronaldo Santiago e Tiago Silva |
Bibliografia consultada
BRISSAC, Sérgio Telles. MARQUES, Marcélia. Relatório antropológico sobre os Tremembé de Queimadas. Fortaleza:
MPF, 2005.
BRASIL. Portaria nº
1.702 de 19 de abril de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, 22
abril, 2013. Seção 1, p. 34.
LOPES, Ronaldo
Santiago. Diásporas,
identidades plurais e a semântica da etnicidade: territorialidades Tremembé. Projeto de pesquisa – mestrado, PPGAS/UFRN, 2013.
LOPES, Ronaldo
Santiago. Manejo agrícola e seus impactos em agroecossistemas indígenas: a
situação dos Tremembé de Queimadas. Tesesina: Encontro de
Ciências Sociais do Norte Nordeste - CISO/PRÉ-ALAS, 2012. Anais CISO, p. 1-18.
LOPES, Ronaldo
Santiago; BEZERRA, Tiago Silva. Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER
Indígena: relatos de uma experiência com as comunidades Tremembé de Acaraú.
Fortaleza, Cadernos de Agroecologia, vol 6, No. 2, Dez 2011.
PATRÍCIO, Marlinda Melo. Relatório
Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Tremembé de Queimadas,
Acaraú/CE. Brasília: Funai, 2010.
SILVA, Cristhian Teófilo da Silva.
Relatório circunstaciado de identificação e delimitação da Terra Indígena
Córrego João Pereira/CE.
Brasília: Funai, 1999.
VALLE, Carlos Guilherme do. Terra,
tradição e etnicidade: os Tremembé do Ceará. Rio de Janeiro: Dissertação de
Mestrado em
Antropologia, PPGAS-MN/UFRJ, 1993.
[1] Sobre as migrações tremembé, Cf. Valle, 1993; Silva, 1999; Brissac e
Marques, 2005.
[2] A dispersão dos Tremembé da Lagoa dos
Negros não se restringiu apenas a Queimadas. Em toda a região circunvizinha à
Lagoa dos Negros existem famílias que atualmente ainda mantém vínculos de
parentesco com os Tremembé do Córrego João Pereira e de Queimadas. Entre as
localidades identificadas estão Pedrinhas, Córrego do Augustinho, Córrego da
Volta, Córrego dos Fernandes, Gameleira e Aroeira, em Acaraú. Mais detalhes,
conferir Patrício (2010).
[3] Em 1997, a fazenda Volta/Lagoa dos
Negros é desapropriada pelo INCRA, tornando-se um assentamento federal, com
área de pouco mais de 3.000 hectares. Segundo dados do MDA, atualmente o
assentamento possui 79 famílias.
[4]
Op. cit., p. 45.
[5] Cadastro
FUNAI, 2010.
cara te agradeço pela publicação desas conquistas do nosso povo e com certeza vc fez e faz parte destas nossas conquistas de seu amigo cleiciano que deseja a todos que contribuem para essa luta!!!!1
ResponderExcluirColegas,
ResponderExcluirA rapidez com que se deu este processo se deve, ao meu ver, a vários fatores. A organização dos Tremembé e a equipe do GT coordenada pela antropóloga Marlinda Patrício. Fiz parte deste GT como ambientalista, e muito me orgulho disso.Quero ressaltar, a disposição para o diálogo do DNOCs que designou um servidor experiente, João Paulo,para participar do GT, quem não mediu esforços para a TI Tremembé de Queimadas se tornar uma realidade. O pessoal do CRAS de Acaraú, do Instituto Carnaúba, cujo trabalho contribui enormemente para a sustentabilidade dessa terra, enfim, parabéns a todos os envolvidos. Trabalho cumprido.
Concordo com você Rosa. Agradeço pelas palavras.
ExcluirAbraço!
Aos Tremembé desejo toda paz e tranquilidade que eles merecem.
ResponderExcluirFico feliz de poder ter realizado o estudo junto com uma equipe de excelentes profissionais, que junto com os Tremembé, tivemos condições de construir um documento consistente que desse a ele o direito de regularização de suas terras.
Agradeço o empenho do Sr. JP do DNOCS por não ter medido esforços para dar condições de trabalho e acesso a área onde a terra dos Tremembé está localizada. Agradeço também a FUNAI de Fortaleza e de Brasília pelo empenho para que o trabalho de minha equipe fosse viabilizado, mas sobretudo são os Tremembé os maiores responsáveis pelo sucesso do trabalho.
Não posso deixar de mencionar o pessoal do CRAS e Instituto Carnaúba que contribuíram com suas informações no diálogo informal.