Segue abaixo, depoimento da professora Amanda Silvino, do curso de Biologia da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA Sobral, relatando acerca da aula de campo realizada na aldeia Tremembé de Queimadas.
Ainda que nossa rica imaginação estivesse cheia de ideias
sobre o que iriamos encontrar na aldeia dos Tremembé, todos nós fomos
surpreendidos. Principalmente porque não importa quão rica seja nossa
imaginação, o sentir não pode ser imaginado. Dor e felicidade, angústia e
superação precisam ser vividos. Na vida acadêmica, o início de qualquer
disciplina não tem nem de perto a alegria que recebemos quando iniciamos nossa
grande aula na aldeia dos Tremembé de Queimadas. Senhoras, lideranças, crianças
estavam lá sorrindo e esperando uma turma de vinte e oito alunos para
compartilhar conosco conhecimentos, sentimentos, histórias e recordações. Fomos
acolhidos com um lindo café da manhã, beiju, suco de frutas, café e bolo de
milho.
Recepção na aldeia com café da manhã Foto: Emanuelle Rocha |
Acolheram-nos como nos colhem nossos avós, nos mostraram
desde o inicio que somos o mesmo povo. Mas nossa história foi esquecida e
enterrada. Minha avó, nascida em 1920 no interior do Piauí, em um lugarejo
chamado Tocos, nunca viu nenhum índio segundo ela. Mas como eles, ela plantava
milho, feijão, fazia artesanato de palha de carnaúba, cajuína e farinha de
mandioca, cantava e dançava reisado, dormia em rede de tucum. Tantas coisas
como eles, mas nenhuma memória. Na aldeia Tremembé eu tive a comprovação que as
origens da nossa sociedade foram esquecidas e enterradas vivas. Fui ensinada a
crer que índio era algo do passado, mas foi justamente em uma aldeia indígena
que revivi momentos da minha criança feliz, de férias no interior de uma
comunidade escondida no Piauí. Lá eu também sentava no chão para escutar lendas
e mistérios das matas, que eram encantadas, que tinham vontade própria e
caprichos.
Logo após nossa recepção, fomos com Elaine e Evaldo conhecer
os quintais produtivos. Na aldeia o pessoal recebeu formação permitindo que
conhecimento local associado aos conceitos de permacultura rendessem hectares
de produção orgânica. Pudemos perceber o carinho com que a terra era tratada,
reflorestada e manejada. Tocou-nos o orgulho que Evaldo sente em sustentar sua
família com uma produção que não queima mais a terra e não usa mais insumos
químicos.
Elaine e Evaldo (a direita) apresentam os quintais produtivos Foto: Emanuelle Rocha |
Evaldo falando sobre o sistema agroecológico de produção Foto: Emanuelle Rocha |
Além disso, Evaldo é um grande professor de agroecologia e
fiquei feliz em ver os alunos da turma de Ecologia Geral vivenciando os
conceitos de fertilidade dos solos, ciclo da água e dos elementos químicos,
sucessão ecológica, germinação, funções da vegetação e fauna associada na
regulação de pragas, manejo e ecologia de paisagens. E com muita atenção,
Evaldo nos ensinou muito sobre sua ciência.
Depois de percorrermos a horta, os bananais, as áreas de
reflorestamento, as plantações de pimenta de cheiro, e a lagoa desencantada,
Evaldo nos levou até o Centro de Cura onde sua irmã Marluce nos recebeu. Ela é
uma das médiuns que realiza os trabalhos de cura na comunidade, e com o poder
dos Encantes, aconselha e encaminha a corrente de luz que cura casos de pessoas
de muitos lugares do Brasil.
É a tradição dos ‘cabocos’ e o trabalho de cura é antigo,
muito antigo. Marluce sabe sobre as correntes do mal, mas lá na casa de cura
só se trabalha com a corrente do bem. Quando há trabalho não é permitido entrar
de roupa curta, e lá não se fala ‘coisa ruim’. Marluce nos dizia o tempo
inteiro que não tinha estudo, que ela não sabia de nada e não curava ninguém,
que o poder é todo dos Encantes. São os Encantes que tudo sabem, tudo
aconselham, promovem a cura, e foram muitos os casos de cura contados.
Pajé Marluce no Centro de Cura Foto: Emanuelle Rocha |
Já era mais de uma hora da tarde quando saímos da casa de
cura para almoçar. Tivemos um banquete preparado pelas mulheres da comunidade:
arroz com feijão, farofa de cuscuz, macarrão, carnes de porco, gado, galinha
refogada, jerimum. A vontade era então de deitar em uma rede e simplesmente
aproveitar o barulho das matas em uma sombra fresca. A temperatura do dia era
amena e o clima chuvoso. Mas nossa
‘siesta’ foi incrivelmente melhor!
Ao término do almoço caminhamos até a casa do Seu Manuel e
Dona Rita Sabino e fomos acolhidos por um amor incondicional. Sentados à sombra da
mangueira vimos seu Manuel declarar sua paixão à Dona Rita em mais de sessenta
anos de casados.
Manoel Félix, Sebastiana e Rita Sabino narrando histórias da aldeia Foto: Emanuelle Rocha |
Ela é três anos mais velha que ele, e aos oitenta e nove anos
nos contava como hoje eles vivem muito melhor do que antigamente. Já haviam
passado muita fome e muito frio, mas a alegria de viver nunca foi perdida.
Cantando cantigas do Torém, seu Manuel relembrava suas origens desde Aroeira,
passando por Almofala, chegando à lagoa dos nêgo (Lagoa dos Negros) e depois na comunidade de
Queimadas. Assim foi chamada por causa de uma grande queimada que havia
ocorrido no local, e que não havia deixado nem um pé de planta em pé. Era tudo
preto igual carvão. E lá ergueram uma palhoça, uma casa de pau-a-pique e
finalmente o tijolo chegou. Para eles a situação hoje é muito melhor e ninguém
passa mais a dificuldade já vivenciada. Sempre nos lembrando de que passar por
dificuldade não é vergonha para ninguém e que a história tinha que ser contada.
A comadre de Dona Rita e Seu Manuel, Dona Sebastiana, mostrava
as casas de tijolo construídas pelos mais novos e dizia: “tijolo é só ilusão,
eu gosto mesmo é da minha casinha ali. Eu que levantei com minhas próprias mãos
e é lá que eu preparo as garrafadas”.
Ela é uma das mulheres que aprendeu a medicina da mata e prepara os
medicamentos para todo tipo de enfermidade.
Local onde Sebastiana prepara garradas Foto: Emanuelle Rocha |
Muita conversa e muita história dos mais velhos. História de
amor de Seu Manuel e Dona Rita, forte para ajudar a superar uma situação de
miséria que havia ficado no passado. Diante de tanta alegria perguntei se eles
cantariam alguma música do Torém. Dona Rita mostrava tristeza apenas por não
poder mais dançar a tradição dos Tremembé. A doença que a acometera limitou a
movimentação do lado direito do seu corpo. Ainda assim, cantava com alegria as
cantigas do Torém e seu Manuel, de pé, nos mostrava como era a dança.
Naquele momento o tempo parecia ter parado e nada mais
existia no mundo, apenas a corrente de alegria que crescia o desejo de ficar,
de aprender e vivenciar muito mais com aquela gente todo aquele encanto.
Infelizmente chegou momento de partir.
Se despedindo... Foto: Emanuelle Rocha |
Com muito amor Dona Rita levantou-se de
sua cadeira e abraçou cada um de nós, Seu Manuel acenava com a Mão, Dona Sebastiana nos convidava a voltar sempre que quiséssemos. Trouxemos conosco muito
aprendizado, muita alegria e muito mais respeito a uma história que não é de
outro povo, mas a nossa própria nos mostrada naquele momento.
E na próxima lua clara seu Manuel fará um grande Torém no
quintal de Dona Sebastiana, Dona Rita cantará as cantigas e os mais jovens, com
a força dos Encantes, continuarão a tradição que um dia, sem mais ameaças, se
mostrará livremente a cada um de nós.
Foto da turma em frente à escola indígena Foto: Emanuelle Rocha |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Leu? Comente, critique, opine!